As tardes chuvosas
 



Cronicas

As tardes chuvosas

Marcello B. de Almeida


Inverno na minha cidade natal é sinônimo de muita chuva, nada de neve ou frio, apenas intensas tempestades com raios que iluminam os céus e trovões que estremecem a terra. Quase dava para dizer que o clima havia esfriado, isso se você considera 25ºC frio.

O que eu mais gostava naqueles dias de inverno da minha infância era do cochilo da tarde ao som da chuva caindo sobre os telhados e do cheiro da terra molhada, que juntos criavam um ambiente tão relaxante que era fácil perder a hora de levantar para fazer as tarefas da escola. Adorava também os banhos de chuva no quintal, as brincadeiras na lama com o cachorro e de me sentar aos pés da mangueira enquanto me deliciava com seus frutos maduros e fresquinhos.

Às vezes, a chuva era tão forte que inundava a principal via do bairro, tornando impossível distinguir onde terminava a pista e começava o canal. Transtorno para alguns, diversão certa para as crianças da vizinhança, que logo ocupavam o rio temporário em que se tornava a avenida, permitindo a prática de diversos esportes aquáticos improvisados: canoagem com tábuas amarradas em isopor e garrafas pet, salto ornamental, nado estilo livre e corrida de barquinhos de papelão – apesar dos protestos de alguns adultos preocupados com nossa segurança.

Costumo dizer que, graças àqueles lúdicos momentos naquela água nada recomendável, nossa geração desenvolveu uma superimunidade a parasitas dos mais variados tipos, exceto, é claro, o João, filho do dono da mercearia da minha rua, famoso por dar os melhores mergulhos de cima da passarela que cruzava a avenida, dando direto no canal.

Um dia, João deu um salto impressionante, com três piruetas completas no ar. Lembro da molecada eufórica em torno do ponto de mergulho. Após alguns minutos, a euforia se tornou apreensão, pois João ainda não tinha emergido da água barrenta. Mais alguns minutos se passaram até seu pai chegar, cinta na mão, pronto para dar umas sovas no filho desobediente que ainda não tinha voltado.

Lembro que a chuva já tinha passado quando os bombeiros chegaram e atravessaram pela aglomeração de curiosos que se formou às margens do canal. Um dia de buscas se passou, dois dias, até que no terceiro dia, o corpo de João foi encontrado a quilômetros de distância do local do mergulho, na foz do rio onde o canal desaguava.

Após aquela fatídica tarde chuvosa de julho, a prefeitura realizou diversas obras naquela área, construindo até uma mureta em torno do canal. Depois disso, não houve mais alagamentos. A canoagem, os saltos e o nado ficaram na nossa lembrança, bem como a tripla pirueta que João deu naquele dia.


Marcello B de Almeida, 41 anos, casado, natural de Belém do Pará, graduado em Química e em Direito. Servidor Público da área jurídica. Apaixonado por cinema, música e livros. Na literatura seu gênero favorito é a literatura fantástica e seus autores prediletos são Gabriel García Márquez, Edgar Allan Poe e J.R.R Tolkien. Participa do Curso Online de Formação de Escritores

 

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